Foto tirada no dia 11 de janeiro de 2025 mostra pessoas comemorando a retomada do exército sudanês de Wad Madani, capital do estado de Gezira, centro do Sudão, em Omdurman, ao norte da capital Cartum, Sudão. (Foto por Mohamed Khidir/Xinhua)
Viajar no Sudão hoje é passear pela alma fragmentada de uma nação. Cada estrada tomada, cada posto de controle cruzado e cada rosto encontrado mostram que a sobrevivência não é sobre resiliência, mas sobre adaptação. O experiente motorista de tuk-tuk, a jovem calma e o idoso determinado não são heróis, mas pessoas comuns aprendendo a respirar debaixo d'água.
Por Fayez Elzaki Hassan
Cartum, 25 fev (Xinhua) -- O cano do rifle brilhava sob o sol do deserto. Minha câmera, laptop e celular estavam espalhados no capô do nosso Toyota Land Cruiser, seus conteúdos expostos ao brilho severo de três homens fortemente armados.
Era 23 de janeiro, e eu estava há horas na poeira da planície de Butana, detido por fotografar uma paisagem árida agora sinônimo do desmoronamento do Sudão.
Os homens armados olharam cada imagem e arquivo dos meus dispositivos, sua suspeita um espelho da paranoia que tomou conta da nação. Quando eles finalmente me soltaram, confiscando apenas o cartão de memória da câmera, não senti alívio, mas um reconhecimento maçante: esse é o preço de ser testemunha.
Essa jornada de 26 horas de Atbara, no norte, até a capital Cartum, que antes levava apenas quatro horas, foi a mais recente de uma série de minhas "Odisseias" pelo Sudão, que redefiniram completamente as viagens nessa nação em tempos de guerra.
Cada quilômetro gravava mais profundamente a verdade que aprendi desde que o conflito entre as Forças Armadas Sudanesas e as Forças de Apoio Rápido paramilitares começou em meados de abril de 2023: o movimento aqui não é mais sobre destinos, mas sobre a sobrevivência em uma região selvagem onde o perigo não usa uniforme.
Pessoas deslocadas da área de Al-Samrab são fotografadas dentro de escola no bairro de Al-Ahamda, cidade de Bahri, ao norte da capital sudanesa, Cartum, no dia 15 de dezembro de 2024. (Xinhua/Mohamed Khidir)
Meu primeiro reconhecimento dessa verdade ocorreu em 12 de junho de 2024, quando viajei de Al-Azhari, um bairro no sul de Cartum, para a cidade de Kosti para comemorar o Eid al-Adha com minha família. Foi uma reunião agridoce que marcou precisamente um ano desde que eles fugiram da capital.
A viagem de 320 km virou um desafio de quase 10 horas. O tuk-tuk de um parente me pegou às 4h da manhã, horário local (02:00 GMT) e me levou para uma estação de ônibus próxima, passando pela madrugada de Cartum, onde explosões esporádicas soavam pelas ruas vazias.
"Costumo transportar passageiros para a estação de ônibus; me acostumei com isso", disse o motorista categoricamente enquanto tiros soavam à distância. Depois de terminar a viagem esburacada de tuk-tuk, passei cerca de duas horas para chegar à principal estação de ônibus, onde paguei 80.000 libras sudanesas (cerca de 133 dólares americanos), mais de cinco vezes a tarifa pré-guerra, por um assento em um veículo amassado, com cheiro de suor e de pavor.
Ao longo da viagem, os passageiros, incluindo eu, passaram por buscas e interrogatórios implacáveis em cada posto de controle, onde os soldados examinavam nossas identidades e motivos para viajar com ameaça. Como jornalista, escondi minha profissão, ciente de que isso poderia me tornar um alvo para ambas as facções do conflito.
Ainda me lembro de jovem mulher ao meu lado ao longo do caminho: ela raspou a cabeça e usou roupas masculinas, um disfarce necessário para escapar do escrutínio de guardas armados conhecidos por caçar mulheres.
"Estou pensando em quanto tempo vai demorar para meu cabelo crescer, mas meu sacrifício parece banal comparado ao que outras pessoas aguentaram nesses postos de controle", disse ela.
Sete horas depois, abracei minha família em Kosti, terminando a jornada que nos transformou, um grupo de viajantes desconhecidos unidos pela mesma vulnerabilidade.
Foto tirada com celular em Port Sudan mostra grupo de pessoas deslocadas em ônibus antes de voltar a Wad Madani, capital do estado de Gezira, centro do Sudão, como parte de um programa governamental para retorno voluntário, no dia 10 de fevereiro de 2025. (Foto por Urqia Elzaki/Xinhua)
Em outubro do ano passado, as áreas ao sul de Cartum viraram campos de combate. Fugindo da violência sufocante, entrei em um comboio na noite de 22 de outubro, indo para o norte através de Butana, depois Atbara e finalmente para Port Sudan. No caminho, um silêncio assustador envolveu a estrada, quebrado apenas pelos sons distantes da vida selvagem que aumentaram a ansiedade coletiva.
O motorista manobrou pelo terreno esburacado com a habilidade da experiência, desligando os faróis por quilômetros seguidos. "Em alguns lugares, há homens armados, e não quero chamar a atenção deles", explicou eles.
Durante a viagem, comecei a conversar com um idoso que estava ao meu lado, com o rosto machucado e a mão direita marcada com cortes recentes, evidências de um ataque passado.
Ele disse que ficou em sua casa na sitiada Jabra, ao sul de Cartum, após o deslocamento precoce de sua família. Doenças e fome eventualmente o forçaram a fugir quando "a morte estava próxima".
Quando mostrei preocupação com os perigos à frente, o homem disse: "Já nos afogamos, então não teremos medo de nos molhar".
Quando o primeiro posto de controle na entrada sul do estado do Rio Nilo surgiu após uma viagem de 12 horas, sete soldados cercaram nosso veículo como abutres, seus dedos pairando sobre os gatilhos. A maioria carregava armas leves, e uma DShK (metralhadora pesada que vi muitas vezes enquanto cobria eventos militares do Sudão) estava montada na traseira de um veículo próximo.
"Não há necessidade de temer os postos de controle do exército; tenha calma e não fale nem faça brincadeiras com os soldados", aconselhou o motorista depois de meia hora que passamos pelo posto de controle.
Ele estava certo, mas ninguém queria fazer brincadeiras. A exaustão tomou conta enquanto íamos em direção a Port Sudan, estávamos empoeirados e esgotados. Sem ar condicionado no veículo, abrimos as janelas para aguentar o calor sufocante.
Essas jornadas, três entre várias outras feitas por sudaneses como eu nos últimos 22 meses, revelam uma guerra que devora não só vidas, mas também movimentos e identidades além da porta de casa.
Antes cheias de comerciantes e peregrinos, as estradas são controladas por interrogadores armados e bandidos provocando o caos. Os preços das passagens dispararam, com um único assento de ônibus custando o equivalente a uma semana de salário, exacerbando as dificuldades das pessoas. Pior ainda, os moradores precisam esconder suas identidades por segurança, mulheres se disfarçando de homens e jornalistas escondendo seus passes de imprensa.
Foto tirada no dia 28 de outubro de 2024 mostra veículos destruídos na cidade de Bahri, ao norte de Cartum, Sudão. (Xinhua/Mohamed Khidir)
Bairros inteiros em Cartum viraram prisões a céu aberto. Muitos não têm dinheiro ou refúgios seguros para se abrigar, enquanto outros se apegam a suas casas como atos de desafio. Muitos dependem de familiares realocados para apoio, cozinhas comunitárias conhecidas como "Takaya" para alimentos ou comitês de resistência locais para entregas de ajuda. Até mesmo algo tão simples como buscar pão pode resultar em morte.
Viajar no Sudão hoje é passear pela alma fragmentada de uma nação. Cada estrada tomada, cada posto de controle cruzado e cada rosto encontrado mostram que a sobrevivência não é sobre resiliência, mas sobre adaptação. O experiente motorista de tuk-tuk, a jovem calma e o idoso determinado não são heróis, mas pessoas comuns aprendendo a respirar debaixo d'água.
Conforme o conflito chega perto de seu segundo aniversário, muitas vezes penso no soldado que confiscou meu cartão de memória há um mês. O que ele tentou apagar, outros arriscam tudo para documentar. Nossas estradas podem ser danificadas, mas nossas histórias perdurarão, espalhadas como sementes em terra árida, recusando-se a ser silenciadas.
A dúvida continua: qual preço devemos pagar pela mais tênue esperança da liberdade de amanhã? No Sudão, a resposta está na coragem daqueles que continuam se movendo, se lembrando e acreditando que a jornada pode um dia levar a outro lugar, a um lugar melhor.